Em meio a um clarão, entre nuvens, uma pálpebra se abre e expõe o olho daquele que vem do alto. Uma presença anunciada sobre papel branco, tinta preta e a mão que escreve: “Als das Kind Kind war, wusste es nicht, das es Kind war, alles war ihm beseelt,und alle Seelen waren eins”; uma mensagem, uma cantiga para os que vêem o que outros não vêem. Uma lente difusa que extrapola os limites da imaginação e da fantasia para aguçar os sentidos que tornem possível a verossimilhança.
Postado nas ruínas da torre da Gedächtniskirche, lá está o anjo
Damiel prestes a adentrar o universo urbano. Com o olhar, identifica camadas da
cidade de Berlim; seus quarteirões e pátios, suas ruas e cruzamentos, os
automóveis parados ou circulando, as pessoas. Esse ser etéreo flexiona uma das
asas, metamorfoseia-se e ganha os céus como pássaro. Num rasante entre rastros
de fumaça de um avião, transporta-se para o seu interior, agora sob a forma de
figura humana.
No interior da
aeronave, Damiel (Bruno Ganz) é percebido, entre olhares cúmplices, apenas por
uma criança. Afinal, no imaginário de Wim Wenders, ao anunciar sua inusitada
estória fílmica Der Himmel über Berlin
(Asas do Desejo – 1987), somente
crianças são capazes de enxergar anjos. Além do mais só elas não se preocupam
com o que é ficção ou o que é real. Tudo é verossímil. Os demais, mortais
passageiros entretidos em seus próprios pensamentos, vivem a expectativa do
pouso dentro de minutos na cidade. Dentre estes, destaque para um personagem
creditado como As himself.
Inquieto, As himself é a representação da figura
do diretor de cinema movido pelo desejo de realizar um projeto fílmico sobre
Berlim. Anunciado como estrangeiro para o espectador, Peter Falk interpreta o
papel de um diretor norte-americano, alter
ego do diretor alemão, e sugere um personagem duplamente ambíguo em Der Himmel über Berlin; é, ainda,
claramente o personagem de um “ex-anjo”. Demonstra, ao mesmo tempo, a ansiedade
própria de quem é um ser alheio à cidade, ou do filho que a ela retorna para
resgatar a memória embaçada de um local atravessado pelos vestígios da destruição
e da guerra.
Na sequência, um
plano mescla a cidade com um nevoeiro. A câmera se lança para o alto, como uma
aeronave a fazer acrobacia. Desliza entre as nuvens e destaca, em seguida, a
torre de Messe und
Ausstellungs gelände – um centro de convenções feito à época da ocupação
soviética. Da janela do avião, a morfologia urbana de Berlim se exibe aos olhos
dos viajantes. O edifício Messe
aparece no primeiro plano, seguido dos fluxos de carros sobre o viaduto que
faceia a linha férrea e dos quarteirões residenciais do entorno.
A câmera, ao se aproximar
dos edifícios de apartamentos que têm nas fachadas vários painéis
publicitários, desperta o interesse do anjo Damiel. O seu ponto de vista conduz
a câmera a entrar, pelas janelas, no ambiente interno das moradias. Ele observa
uma velha senhora sentada numa poltrona e que, em silêncio, dirige o olhar fixo
para a janela da sua casa, onde a imagem de Messe se projeta. Atrás dela, um jovem
agachado. Nada a distrai diante de algo que lhe traz recordações.
Damiel, agora em
outro apartamento, encontra-se diante de uma mulher apreensiva em meio à
reforma por ela executada na casa. O ambiente é tomado pela melancolia da
música que vem do rádio. Daí, o anjo se transporta para outra moradia. O
vizinho, que chega à casa com trajes de frio, senta-se entre livros e vê à sua
mesa um álbum de fotografias que remetem às lembranças de laços afetivos. Esses
primeiros personagens sugerem as idas e vindas dos indivíduos por uma cidade
fracionada.
Do interior de um apartamento, a câmera se debruça na janela, tal como os olhos do anjo,
vendo do alto o movimento de crianças a brincar no pátio do edifício. Neste
enquadramento a imagem fixa especial atenção na área de recreação, limitada
entre uma das fachadas do prédio e o muro que a separa da avenida repleta de
automóveis em circulação. Descreve, por assim dizer, uma espécie de articulação
entre os lados interior e exterior da cidade.
Mas a câmera
retorna ao seu principal interesse neste momento: (re)conhecer o modo de vida
dos moradores. Atravessa portas, janelas ou paredes. Não há limites para o
visitante em sua investigação nos apartamentos. Vê um jovem de camiseta e
jeans, sentado e com aspecto de artista. Entra na casa de dois idosos na qual o homem vê na televisão a imagem de uma mulher
movimentando moedas, enquanto; na cozinha, a provável esposa, à mesa e reflete
o tempo como que paralisado.
Das escadarias
do interior do edifício para o ambiente em que alguns meninos assistem a um
programa de televisão, o anjo se faz agora presente como imagem daquele que os
observa. Num quarto de outro apartamento, repleto de brinquedos pelo chão, uma
menina de óculos e de aparência frágil, é vestida pela mãe. Ela, como toda
criança, troca olhares com Damiel. Ele, por sua vez, atém-se ao peitoril da
janela adornado com animais de brinquedo, o que
sublinha o movimento da cidade e sinaliza a sua saída.
O voo rasante do
anjo sobre a cidade vai revelando viadutos e avenidas em fluxo. Neste instante,
Damiel capta o som estridente de uma típica ambulância berlinense, mesclado ao
choro de um bebê. Entra no veículo em que um homem acompanha a mulher gestante.
O anjo põe a mão sobre a sua barriga e acalma mãe e filho, prestes a vir à luz.
É a primeira interferência direta do anjo na vida dos moradores da cidade.
Na mesma
avenida, a sequência fílmica é pontuada por imagens de pessoas motorizadas, entre
as quais um homem discutindo com a mulher, uma anciã dirigindo seu automóvel em
companhia de um cachorro, uma família de imigrantes turcos. Atento, Damiel ouve
o pensamento de cada indivíduo, seus anseios e conflitos. Até então, o anjo tem
procurado reconhecer o contexto em que estão inseridos os habitantes de Berlim,
como vivem e como se comportam neste particular lócus urbano.
Noutra fração da
cidade, Damiel acomoda-se no interior de um carro parado numa revendedora de
automóveis. Cerra os olhos como se descansasse. O plano agora o focaliza com aquele
que será seu companheiro nesta viagem: o anjo Cassiel. Os dois dentro do carro
estacionado, com um livro aberto, observam pela vidraça as pessoas do lado de
fora. Alguns parados, outros em movimento – a pé ou de bicicleta. Há os que se
aproximam da vidraça e também um jovem que é visto correndo à frente. Nesta
loja, é mostrada a discussão entre uma compradora e o vendedor.
Damiel e Cassiel
confabulam dentro do automóvel sobre o que os move no périplo pela cidade. Dirigem-se
para a Staatsbibliothek zu Berlin, o
abrigo da falange de anjos que paira sobre Berlim. Lá, eles acompanham o
movimento de pessoas de diferentes tipos e idades, inclusive uma mulher de
origem islâmica, que estudam e fazem pesquisas. Neste lugar, que possibilita a
captura do saber, apenas dois meninos se distraem e percebem a presença de
Damiel.
No interior da
biblioteca, o movimento de câmera e a constituição dos planos são rigorosamente
definidos por uma geometria precisa, ressaltada pelos quadros, que à semelhança
de um mosaico, primam pelo equilíbrio da composição dos espaços e da
profundidade de campo. As imagens resultantes, que transcorrem sob a mira dos
anjos, indicam o percurso das pessoas pelos salões de leitura, pelos mezaninos,
sentados em mesa ou à procura de referências nas estantes.
Corte. Agora
Damiel está no metrô. O anjo está no meio de vários personagens da cidade,
cuidadosamente representados no deslocamento da câmera. Suas expressões evocam
lembranças, fadiga, inquietude ou expectativas. Alguns lêem, outros cochilam e
despertam e há ainda o que carrega uma criança no colo. Também há os que mexem
ansiosamente as próprias mãos. Neste mesmo vagão, Damiel se aproxima e traz
alento para um homem cabisbaixo, de mãos cruzadas e um tanto apático.
No túnel por
onde correm os trilhos do metrô, um plano destaca um ímã preso a um barbante e
que toca vários pontos do subsolo. A câmera sobe e lá estão dois meninos sobre
uma boca de lobo tentando capturar uma moeda perdida. Damiel demonstra
curiosidade diante da ação, mas segue em direção a novas descobertas. Chega a um
núcleo habitacional e depara-se com outras crianças brincando com uma bola à
frente de um extenso muro. Um outro menino, solitário, o observa.
Percorrendo esse
espaço de moradia, o anjo surpreende-se ao ver, por meio de uma espécie de
janela ou portal, um circo montado no espaço exterior. Um elefante passa e
preenche o plano. Sob a tenda, uma trapezista ensaia movimentos pendulares que
cortam e recompõem o espaço cênico. Uma presença feminina adornada com asas
domina a tela num balançar suave, que expressa o desejo de voar. Marion
(Solveig Dommartin) é um “anjo de carne e arte” materializado para o espetáculo.
Damiel, movido
pelo encantamento das evoluções da trapezista, transporta-se para o universo
humano. Seus olhos, em fração de segundos, vêem aquele cenário, até então
matizado pelos tons de preto e branco, transfigurar-se em um colorido terno.
Marion finaliza os ensaios, sai da tenda e senta-se no capô de um carro. Ainda
paramentada e com aparência melancólica, cobre-se com um casaco de frio e
deixa-se envolver pelo silêncio.
Pensativa, a
trapezista distrai-se e sorri ao ver um elefante em movimentos adestrados para
o espetáculo. Damiel, enamorado, a observa. Um músico com um acordeão se aproxima.
Ela retira o adereço em forma de asa, coloca-o sobre ele e passa a perambular
entre a tenda, carros e aparatos do circo. Vai à sua cabine e coloca uma música
para ouvir. Damiel entra em seus aposentos, põe as mãos sobre objetos,
fotografias, pedras: a intimidade e a memória de Marion.
Sentada na cama,
sem perceber qualquer presença estranha, ela se desnuda sob o olhar embaraçado
de Damiel. Mais uma vez ele depara com o mundo real dos seres da terra, ao dirigir
os olhos para os contornos da tez rósea de Marion, como se acariciasse aquele
corpo delgado envolto numa imagem que se metamorfoseia em tons de azul e verde-água.
A naturalização da imagem anuncia a relação de ambivalência que paira sobre
Damiel durante o repouso da mulher.
Corta para outra
cena da cidade. A sequência do filme transcorre entre planos e imagens urbanas.
O cruzamento de uma ponte com uma rua e a uniformidade da escala dos edifícios em
perspectiva é o cenário do acidente entre um carro e um motoqueiro.
Desacordado, um homem está imobilizado e ferido na cabeceira da
velha ponte de ferro. Damiel se aproxima e pousa as mãos sobre ele,
confortando-o dos impactos físicos do acidente e do estado de choque.
Em frente a essa
ponte, a câmera move-se de um lado para outro mostrando que ali há uma divisão
de espaços para automóveis e pedestres. Neste momento, um jovem, que parece
transtornado com o acontecido, vem correndo pela faixa lindeira, aquela
destinada aos automóveis, ao encontro do acidentado. No mesmo local, numa
esquina, os curiosos: uma mulher turca com carrinho de bebê, crianças, adultos,
observam o estado daquele homem. Fim de mais uma cena urbana.
Ladeando a
ponte, no sentido destinado aos pedestres, Damiel continua sua caminhada por
Berlim, agora a pé e misturando-se cada vez mais com os pedestres. Olha para a
lateral e vê uma linha férrea cujos trilhos, entre árvores, cortam e separam
partes da cidade. Sobe na Siegessäule[1] de onde é possível observar a paisagem de inverno que
marca o grande parque Tiergarten, o frontispício horizontal que modela e
predomina no conjunto dos edifícios de Berlim e a
torre de televisão – Fernsehturm – na
Alexanderplatz (praça central de
Berlim, palco da memória de manifestações culturais e políticas) que confere
verticalidade à perspectiva da forma urbana.
De volta para a Staatsbibliothek, o plano fílmico privilegia
a figura de um homem que, visivelmente, traz no corpo as marcas do passado.
Sentado à frente de uma mesa, o personagem Homer espelha a sua memória por
entre os exemplares do globo terrestre que descansam sobre uma base rígida e
estática. Os objetos lembram uma geografia humana que põe o mundo em discussão,
segundo sua dinâmica, suas contradições e até as atrocidades decorrentes da
guerra.
De fato, as marcas do passado, os
lugares de memória da guerra pontuam as descobertas de Damiel. Num flashback,
vêem-se a inserção no filme de imagens
documentais dos destroços da cidade de Berlim e dos seus mortos – adultos e
crianças ––, atirados na via pública. As lembranças de Homer, silenciadas por
sofrimento e dor, têm na presença do anjo Cassiel o acalento de alguém sobre um
corpo sobrevivente. Carrega consigo o peso e os impactos dos que presenciaram a
brutalidade e a intolerância daqueles que não suportam a diferença.
Num gesto
saudosista, este homem marcado pelo tempo e pelo cansaço vai da Staatsbibliothek até os vestígios remanescentes
da guerra. Percorre o emblemático Berlin Mauer,
o muro de concreto que separa a cidade em partes contrárias – ocidental e
oriental. Na primeira parte, onde foi possível a captura de imagens à época, a
textura do obstáculo exibe impressões e manifestos políticos e artísticos por
meio da técnica do grafite. Não se trata apenas de atos de contestação, mas o
desejo de reintegrar laços societários.
Nesta área, um grande
vazio no espaço urbano mostra a Potsdamer
Platz, lugar de encontros e manifestações culturais em Berlim, os cafés,
espetáculos e encontros sociais da cidade. Nas recordações de Homer, são mostrados
os passeios pelo espaço público, quando as pessoas perambulavam pelas calçadas
e paravam de vez em quando para comprar souvenirs.
Mas a sua lembrança remete às próprias imagens do medo e do pavor dos relatos
de guerras e se embaralham
nos takes coloridos e avermelhados das ruínas da cidade.
Mas é em Mitte – centro geográfico de Berlim e
lugar que concentrava número expressivo de moradias e comércio dos judeus – que
o filme mostrará os destroços da paisagem urbana até o fim dos anos 1980. Neste
espaço, o anjo Damiel detém-se na figura conturbada de uma jovem diante de um
típico imbiss – espécie de quiosque
que vende comidas e sanduíches a preços populares. Na sequência, um carro sai
de uma garagem sob os arcos de sustentação da rede ferroviária.
Essa ambiência
constitui planos fílmicos que irão motivar o percurso motorizado de Cassiel por
tais partes da cidade. A paisagem ora é vista pelo movimento cotidiano dos
habitantes, ora pelas imagens documentais que trazem ao presente os impactos da
tragédia. As ruas são tomadas pelo lamento e pelas lágrimas dos sobreviventes.
O trajeto de Cassiel pelas ruas de Berlim o conduz a um set de filmagem onde se reconstituem passagens trágicas sugeridas
pela guerra.
Agora, em um
filme dentro do filme de Wenders, intercalado ainda de outros filmes
documentários, o diretor utiliza-se de uma figura que é ele próprio como personagem.- Peter Falk, para ilustrar a organização e a produção do set. Há a exposição de atores
recrutados, equipe técnica e figurantes selecionados, além de objetos de cena
que compõem o espaço de reconstituição dos conflitos passados. Para tanto, o
cenário é um dos escombros remanescentes que induz à percepção de um lugar que
mescla realidade e representação.
Neste local, a
presença de uma senhora escalada para o filme desperta curiosidade quanto ao
destaque que lhe é conferido no enquadramento da imagem. Introspectiva, ela
pensa sobre momentos duros da guerra e da difícil tarefa das mulheres na
reconstrução da cidade. Mais uma vez, Wenders utiliza imagens coloridas e
documentais para facilitar a compreensão e veracidade dos fatos. Não parece se
tratar apenas de uma opção estética, mas de enfatizar o que algumas pessoas
vivenciaram.
Enquanto transcorrem
as filmagens, Damiel e Cassiel seguem para o circo e assistem a um espetáculo
voltado para o público infantil. No centro do picadeiro, Marion, paramentada de
felino, apresenta jogos de malabares que aguçam o imaginário das crianças ante
a arte do equilíbrio. A gata finaliza o espetáculo numa apoteótica chuva de
balões, o que instiga meninas e meninos a tomarem o palco e o mundo da
fantasia, numa atitude de celebração da vida e da alegria.
Plano geral: uma
árvore seca, entre águas frias e névoa, sublinha a solidão; o isolamento. À
beira de um dos canais da cidade, onde se vêem cisnes repousando sobre as
águas, Damiel e Cassiel refletem sobre o estado das coisas que presenciam.
Andam por uma calçada vazia que faceia o Muro de Berlim. Param e fixam o olhar
sobre a paisagem que se revela, em plano aberto, árida e fria, que pouco
estimula a presença das pessoas. Sobre o canal, uma revoada de pássaros ganha
os céus e transpõe as fronteiras da intolerância.
Num plano geral
da cidade, uma grua se movimenta na construção de um edifício e se fixa no
centro da imagem, como artifício de mudança da sequência do filme. Entre a
massa edificada, a câmera se dirige para o emblemático edifício da Mercedes
Benz, local escolhido por um homem para cometer suicídio. Cassiel não consegue
detê-lo. Ele cai sobre Berlim, numa possível alusão à desesperança. O anjo
salta sobre a cidade, crianças assustam-se com a briga dos pais, um homem dorme
na via pública.
Esta convulsão
do espaço urbano só reforça a desestabilidade social e física de Berlim. Na
agitação desordenada, insert de
imagens histórico-documentais trazem à tela uma cidade em chamas. O contraponto
se faz nos planos seguintes, ao explorar a perspectiva do sonho e da busca do
equilíbrio emocional dos indivíduos, utilizando-se para isso o universo
circense. O malabarismo repousa, enquanto os artistas celebram mais uma
temporada de espetáculo sob a exuberância poética da lua cheia.
Numa boate,
Marion se deixa levar pelo som de uma banda de rock e dança entre pessoas que restringem toda comunicação apenas ao
compartilhamento das batidas musicais. Damiel, sob o olhar absorto de Cassiel,
mira a trapezista em contidos movimentos de baile e, em fração de tempo, se
humaniza e se mostra seduzido por ela. Na mesma noite, Cassiel se afasta para
refletir sobre sua permanência na cidade. Vai a uma lavanderia, aproxima-se da
única usuária daquele serviço: uma mulher turca entre suas malas de viagem.
As máquinas de
lavar roupa encerram a sequência em alusão ao tempo e ao espaço real,
modificando-os e incorporando-os à imaginação. O plano posterior, cenicamente
construído a partir da montagem com efeitos de fusão, comprova este tipo de
associação. Nele, o presente e o sonho se mesclam quando se inscreve nas
imagens o pouso das asas do anjo Damiel sobre a face adormecida de Marion. Ele
acaricia as mãos e o rosto da mulher como sinal de mudança de seu percurso.
Daí em diante, percorre-se
Berlim através de uma sucessão de cenas do cotidiano urbano. Dentro de um
ônibus – BVG-Doppeldeckerbus, num
entardecer, Cassiel pensa sobre os rumos que irá tomar. Diante de um imbiss, Damiel vê Peter Falk desenhando
as ruínas da antiga estação de trem Anhalter Bahnhof. Depois, anda ao lado de
Cassiel na faixa lindeira ao Muro, na face branca e fria da barreira de
concreto, que se impõe sob a égide da militarização soviética. O companheiro
percebe o seu desejo de permanecer naquela cidade.
Subitamente,
Damiel se afasta da condição celestial para adentrar o espaço humano.
Desacordado, Cassiel o transporta para o lado ocidental, onde o Muro está pintado
de grafites à semelhança de figuras guardiãs. Um helicóptero sobrevoa a área, e
crianças o observam. Sobre a sua cabeça cai uma armadura que o fere e desperta.
O sangue do ferimento prova que se tornara homem. As cores e os sons da cidade
o surpreendem e compõem sua nova realidade.
Em frente do
Muro, esboça o seu primeiro diálogo com um passante, indagando-lhe a
identificação das cores de cada figura que compõe o mural de grafites. Sente
frio. Vai a um imbiss e toma café.
Perambula pelas ruas do bairro de Kreuzberg,
sob a linha do U-Bahn – o
metrô de superfície –, e, num antiquário, típica lojinha de Schöneberg, troca a
armadura por chapéu e casaco de inverno. Uma criança aproxima-se dele e pede
informação sobre uma direção a tomar na cidade.
Como cidadão,
Damiel segue livremente por Berlim. Insert
de uma sequência dos artistas do circo levantando acampamento. Enquanto isso,
ele chega ao antigo abrigo de guerra – Luftschutzbunker,
locação do filme de Mister Falk – As
himself. Separados por um gradil, os dois conversam, em inglês, sobre
curiosidades de Damiel
acerca das operações que envolvem os mecanismos de
uma filmagem.
Cassiel mais uma
vez repousa sobre a Siegessäule, o seu refúgio fincado no Tiergarten. Do parque, pressente
o estado de melancolia de Marion em mais um fim de temporada. Ouve seus
pensamentos e vai ao seu encontro como um ser que irá guiá-la nos passos
seguintes. Já Damiel, agora humanizado, corre ansioso pelas ruas, entre os
automóveis, para chegar ao circo. Paralisa-se ao perceber o vazio do local.
Restam somente marcas geométricas do lugar do picadeiro; o círculo por onde ele
caminha aos chutes, em desespero.
Dois meninos
rompem o plano fixo, vão em direção ao centro do círculo e se aproximam de
Damiel. Desolado, ele olha para as crianças e, em seguida, amarra o cadarço do sapato de um deles. A imagem transforma-se em preto e
branco com a presença de Cassiel, a mão amiga que descansa sobre o ombro de
Damiel induzindo-o a encontrar o que o moveu a permanecer na terra. Daí em
diante, ele sai do metrô, anda por entre lojas da estação, come uma maçã e vê
numa televisão o diretor Mister Falk.
Na tela da TV,
um relógio sinaliza as horas e o tempo para Damiel. No mesmo instante, num imbiss, Marion toma café quando o
diretor americano chega ao balcão e faz seu pedido, e Cassiel, do outro lado da
rua, observa a rápida conversa entre os dois. Ela parte e Mister Falk,
observado pela balconista, fala algo como “eu não posso ver você, mas sei que
você está aí”, o que surpreende Cassiel. Corta para um shopping center, onde
Damiel e Marion circulam em lados opostos.
Damiel sai numa
rua pouco iluminada onde um cartaz lhe chama a atenção sobre um show musical: Nick Cave and The Bad
Seeds. No meio de uma expressiva platéia, estão ele e Marion absorvidos pela
melodia. Do palco, ao lado da banda, Cassiel dirige o olhar para os pontos do
ambiente em que cada um se encontra. No balcão do bar, fora da pista de dança,
Damiel toma uma bebida. Marion, em traje vermelho, sente-se atraída por ele,
que lhe oferece uma taça de vinho. Enamoram-se.
Homer, de costas
e portando um guarda-chuva, anda em direção ao Muro que anuncia o fim de um
capítulo da história da cidade. Damiel e Marion, juntos num salão, fazem
acrobacias com uma corda que desce do teto. Cassiel, sentado na escadaria,
admira os movimentos de equilíbrio da trapezista conduzida pelas mãos do seu
parceiro e cúmplice do espetáculo anunciado. O anjo Cassiel retorna à Siegessäule e lança o seu olhar sobre
Berlim. Fortsetzung folgt. Isto é:
“continua”. E o filme acaba.
[1]
Siegessäule é um ícone da cidade de
Berlim, sob a forma de obelisco adornado no topo com uma figura de anjo. A Coluna
Vitória, como é conhecida, foi concluída em 1873 para comemorar a vitória dos
militares prussianos sobre os austríacos, dinamarqueses e franceses, em meados
do século XIX.
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