terça-feira, 2 de abril de 2013

Der Himmel über Berlin (Asas do Desejo – 1987) – O Olhar de Wim Wenders sobre Berlim.



Em meio a um clarão, entre nuvens, uma pálpebra se abre e expõe o olho daquele que vem do alto. Uma presença anunciada sobre papel branco, tinta preta e a mão que escreve: “Als das Kind Kind war, wusste es nicht, das es Kind war, alles war ihm beseelt,und alle Seelen waren eins; uma mensagem, uma cantiga para os que vêem o que outros não vêem. Uma lente difusa que extrapola os limites da imaginação e da fantasia para aguçar os sentidos que tornem possível a verossimilhança.
Postado nas ruínas da torre da Gedächtniskirche, lá está o anjo Damiel prestes a adentrar o universo urbano. Com o olhar, identifica camadas da cidade de Berlim; seus quarteirões e pátios, suas ruas e cruzamentos, os automóveis parados ou circulando, as pessoas. Esse ser etéreo flexiona uma das asas, metamorfoseia-se e ganha os céus como pássaro. Num rasante entre rastros de fumaça de um avião, transporta-se para o seu interior, agora sob a forma de figura humana.
No interior da aeronave, Damiel (Bruno Ganz) é percebido, entre olhares cúmplices, apenas por uma criança. Afinal, no imaginário de Wim Wenders, ao anunciar sua inusitada estória fílmica Der Himmel über Berlin (Asas do Desejo – 1987), somente crianças são capazes de enxergar anjos. Além do mais só elas não se preocupam com o que é ficção ou o que é real. Tudo é verossímil. Os demais, mortais passageiros entretidos em seus próprios pensamentos, vivem a expectativa do pouso dentro de minutos na cidade. Dentre estes, destaque para um personagem creditado como As himself.
Inquieto, As himself é a representação da figura do diretor de cinema movido pelo desejo de realizar um projeto fílmico sobre Berlim. Anunciado como estrangeiro para o espectador, Peter Falk interpreta o papel de um diretor norte-americano, alter ego do diretor alemão, e sugere um personagem duplamente ambíguo em Der Himmel über Berlin; é, ainda, claramente o personagem de um “ex-anjo”. Demonstra, ao mesmo tempo, a ansiedade própria de quem é um ser alheio à cidade, ou do filho que a ela retorna para resgatar a memória embaçada de um local atravessado pelos vestígios da destruição e da guerra.
Na sequência, um plano mescla a cidade com um nevoeiro. A câmera se lança para o alto, como uma aeronave a fazer acrobacia. Desliza entre as nuvens e destaca, em seguida, a torre de Messe und Ausstellungs gelände – um centro de convenções feito à época da ocupação soviética. Da janela do avião, a morfologia urbana de Berlim se exibe aos olhos dos viajantes. O edifício Messe aparece no primeiro plano, seguido dos fluxos de carros sobre o viaduto que faceia a linha férrea e dos quarteirões residenciais do entorno.
A câmera, ao se aproximar dos edifícios de apartamentos que têm nas fachadas vários painéis publicitários, desperta o interesse do anjo Damiel. O seu ponto de vista conduz a câmera a entrar, pelas janelas, no ambiente interno das moradias. Ele observa uma velha senhora sentada numa poltrona e que, em silêncio, dirige o olhar fixo para a janela da sua casa, onde a imagem de Messe se projeta. Atrás dela, um jovem agachado. Nada a distrai diante de algo que lhe traz recordações.
Damiel, agora em outro apartamento, encontra-se diante de uma mulher apreensiva em meio à reforma por ela executada na casa. O ambiente é tomado pela melancolia da música que vem do rádio. Daí, o anjo se transporta para outra moradia. O vizinho, que chega à casa com trajes de frio, senta-se entre livros e vê à sua mesa um álbum de fotografias que remetem às lembranças de laços afetivos. Esses primeiros personagens sugerem as idas e vindas dos indivíduos por uma cidade fracionada.
Do interior de um apartamento, a câmera se debruça na janela, tal como os olhos do anjo, vendo do alto o movimento de crianças a brincar no pátio do edifício. Neste enquadramento a imagem fixa especial atenção na área de recreação, limitada entre uma das fachadas do prédio e o muro que a separa da avenida repleta de automóveis em circulação. Descreve, por assim dizer, uma espécie de articulação entre os lados interior e exterior da cidade.
Mas a câmera retorna ao seu principal interesse neste momento: (re)conhecer o modo de vida dos moradores. Atravessa portas, janelas ou paredes. Não há limites para o visitante em sua investigação nos apartamentos. Vê um jovem de camiseta e jeans, sentado e com aspecto de artista. Entra na casa de dois idosos na qual o homem vê na televisão a imagem de uma mulher movimentando moedas, enquanto; na cozinha, a provável esposa, à mesa e reflete o tempo como que paralisado.
Das escadarias do interior do edifício para o ambiente em que alguns meninos assistem a um programa de televisão, o anjo se faz agora presente como imagem daquele que os observa. Num quarto de outro apartamento, repleto de brinquedos pelo chão, uma menina de óculos e de aparência frágil, é vestida pela mãe. Ela, como toda criança, troca olhares com Damiel. Ele, por sua vez, atém-se ao peitoril da janela adornado com animais de brinquedo, o que sublinha o movimento da cidade e sinaliza a sua saída.
O voo rasante do anjo sobre a cidade vai revelando viadutos e avenidas em fluxo. Neste instante, Damiel capta o som estridente de uma típica ambulância berlinense, mesclado ao choro de um bebê. Entra no veículo em que um homem acompanha a mulher gestante. O anjo põe a mão sobre a sua barriga e acalma mãe e filho, prestes a vir à luz. É a primeira interferência direta do anjo na vida dos moradores da cidade.
Na mesma avenida, a sequência fílmica é pontuada por imagens de pessoas motorizadas, entre as quais um homem discutindo com a mulher, uma anciã dirigindo seu automóvel em companhia de um cachorro, uma família de imigrantes turcos. Atento, Damiel ouve o pensamento de cada indivíduo, seus anseios e conflitos. Até então, o anjo tem procurado reconhecer o contexto em que estão inseridos os habitantes de Berlim, como vivem e como se comportam neste particular lócus urbano.
Noutra fração da cidade, Damiel acomoda-se no interior de um carro parado numa revendedora de automóveis. Cerra os olhos como se descansasse. O plano agora o focaliza com aquele que será seu companheiro nesta viagem: o anjo Cassiel. Os dois dentro do carro estacionado, com um livro aberto, observam pela vidraça as pessoas do lado de fora. Alguns parados, outros em movimento – a pé ou de bicicleta. Há os que se aproximam da vidraça e também um jovem que é visto correndo à frente. Nesta loja, é mostrada a discussão entre uma compradora e o vendedor.
Damiel e Cassiel confabulam dentro do automóvel sobre o que os move no périplo pela cidade. Dirigem-se para a Staatsbibliothek zu Berlin, o abrigo da falange de anjos que paira sobre Berlim. Lá, eles acompanham o movimento de pessoas de diferentes tipos e idades, inclusive uma mulher de origem islâmica, que estudam e fazem pesquisas. Neste lugar, que possibilita a captura do saber, apenas dois meninos se distraem e percebem a presença de Damiel.
No interior da biblioteca, o movimento de câmera e a constituição dos planos são rigorosamente definidos por uma geometria precisa, ressaltada pelos quadros, que à semelhança de um mosaico, primam pelo equilíbrio da composição dos espaços e da profundidade de campo. As imagens resultantes, que transcorrem sob a mira dos anjos, indicam o percurso das pessoas pelos salões de leitura, pelos mezaninos, sentados em mesa ou à procura de referências nas estantes.
Corte. Agora Damiel está no metrô. O anjo está no meio de vários personagens da cidade, cuidadosamente representados no deslocamento da câmera. Suas expressões evocam lembranças, fadiga, inquietude ou expectativas. Alguns lêem, outros cochilam e despertam e há ainda o que carrega uma criança no colo. Também há os que mexem ansiosamente as próprias mãos. Neste mesmo vagão, Damiel se aproxima e traz alento para um homem cabisbaixo, de mãos cruzadas e um tanto apático.
No túnel por onde correm os trilhos do metrô, um plano destaca um ímã preso a um barbante e que toca vários pontos do subsolo. A câmera sobe e lá estão dois meninos sobre uma boca de lobo tentando capturar uma moeda perdida. Damiel demonstra curiosidade diante da ação, mas segue em direção a novas descobertas. Chega a um núcleo habitacional e depara-se com outras crianças brincando com uma bola à frente de um extenso muro. Um outro menino, solitário, o observa.
Percorrendo esse espaço de moradia, o anjo surpreende-se ao ver, por meio de uma espécie de janela ou portal, um circo montado no espaço exterior. Um elefante passa e preenche o plano. Sob a tenda, uma trapezista ensaia movimentos pendulares que cortam e recompõem o espaço cênico. Uma presença feminina adornada com asas domina a tela num balançar suave, que expressa o desejo de voar. Marion (Solveig Dommartin) é um “anjo de carne e arte” materializado para o espetáculo.
Damiel, movido pelo encantamento das evoluções da trapezista, transporta-se para o universo humano. Seus olhos, em fração de segundos, vêem aquele cenário, até então matizado pelos tons de preto e branco, transfigurar-se em um colorido terno. Marion finaliza os ensaios, sai da tenda e senta-se no capô de um carro. Ainda paramentada e com aparência melancólica, cobre-se com um casaco de frio e deixa-se envolver pelo silêncio.
Pensativa, a trapezista distrai-se e sorri ao ver um elefante em movimentos adestrados para o espetáculo. Damiel, enamorado, a observa. Um músico com um acordeão se aproxima. Ela retira o adereço em forma de asa, coloca-o sobre ele e passa a perambular entre a tenda, carros e aparatos do circo. Vai à sua cabine e coloca uma música para ouvir. Damiel entra em seus aposentos, põe as mãos sobre objetos, fotografias, pedras: a intimidade e a memória de Marion.
Sentada na cama, sem perceber qualquer presença estranha, ela se desnuda sob o olhar embaraçado de Damiel. Mais uma vez ele depara com o mundo real dos seres da terra, ao dirigir os olhos para os contornos da tez rósea de Marion, como se acariciasse aquele corpo delgado envolto numa imagem que se metamorfoseia em tons de azul e verde-água. A naturalização da imagem anuncia a relação de ambivalência que paira sobre Damiel durante o repouso da mulher.
Corta para outra cena da cidade. A sequência do filme transcorre entre planos e imagens urbanas. O cruzamento de uma ponte com uma rua e a uniformidade da escala dos edifícios em perspectiva é o cenário do acidente entre um carro e um motoqueiro. Desacordado, um homem está imobilizado e ferido na cabeceira da velha ponte de ferro. Damiel se aproxima e pousa as mãos sobre ele, confortando-o dos impactos físicos do acidente e do estado de choque.
Em frente a essa ponte, a câmera move-se de um lado para outro mostrando que ali há uma divisão de espaços para automóveis e pedestres. Neste momento, um jovem, que parece transtornado com o acontecido, vem correndo pela faixa lindeira, aquela destinada aos automóveis, ao encontro do acidentado. No mesmo local, numa esquina, os curiosos: uma mulher turca com carrinho de bebê, crianças, adultos, observam o estado daquele homem. Fim de mais uma cena urbana.
Ladeando a ponte, no sentido destinado aos pedestres, Damiel continua sua caminhada por Berlim, agora a pé e misturando-se cada vez mais com os pedestres. Olha para a lateral e vê uma linha férrea cujos trilhos, entre árvores, cortam e separam partes da cidade. Sobe na Siegessäule[1] de onde é possível observar a paisagem de inverno que marca o grande parque Tiergarten, o frontispício horizontal que modela e predomina no conjunto dos edifícios de Berlim e a torre de televisão – Fernsehturm – na Alexanderplatz (praça central de Berlim, palco da memória de manifestações culturais e políticas) que confere verticalidade à perspectiva da forma urbana.
De volta para a Staatsbibliothek, o plano fílmico privilegia a figura de um homem que, visivelmente, traz no corpo as marcas do passado. Sentado à frente de uma mesa, o personagem Homer espelha a sua memória por entre os exemplares do globo terrestre que descansam sobre uma base rígida e estática. Os objetos lembram uma geografia humana que põe o mundo em discussão, segundo sua dinâmica, suas contradições e até as atrocidades decorrentes da guerra.
De fato, as marcas do passado, os lugares de memória da guerra pontuam as descobertas de Damiel. Num flashback, vêem-se a inserção no filme de imagens documentais dos destroços da cidade de Berlim e dos seus mortos – adultos e crianças ––, atirados na via pública. As lembranças de Homer, silenciadas por sofrimento e dor, têm na presença do anjo Cassiel o acalento de alguém sobre um corpo sobrevivente. Carrega consigo o peso e os impactos dos que presenciaram a brutalidade e a intolerância daqueles que não suportam a diferença.
Num gesto saudosista, este homem marcado pelo tempo e pelo cansaço vai da Staatsbibliothek até os vestígios remanescentes da guerra. Percorre o emblemático Berlin Mauer, o muro de concreto que separa a cidade em partes contrárias – ocidental e oriental. Na primeira parte, onde foi possível a captura de imagens à época, a textura do obstáculo exibe impressões e manifestos políticos e artísticos por meio da técnica do grafite. Não se trata apenas de atos de contestação, mas o desejo de reintegrar laços societários.
Nesta área, um grande vazio no espaço urbano mostra a Potsdamer Platz, lugar de encontros e manifestações culturais em Berlim, os cafés, espetáculos e encontros sociais da cidade. Nas recordações de Homer, são mostrados os passeios pelo espaço público, quando as pessoas perambulavam pelas calçadas e paravam de vez em quando para comprar souvenirs. Mas a sua lembrança remete às próprias imagens do medo e do pavor dos relatos de guerras e se embaralham nos takes coloridos e avermelhados das ruínas da cidade.
Mas é em Mitte – centro geográfico de Berlim e lugar que concentrava número expressivo de moradias e comércio dos judeus – que o filme mostrará os destroços da paisagem urbana até o fim dos anos 1980. Neste espaço, o anjo Damiel detém-se na figura conturbada de uma jovem diante de um típico imbiss – espécie de quiosque que vende comidas e sanduíches a preços populares. Na sequência, um carro sai de uma garagem sob os arcos de sustentação da rede ferroviária.
Essa ambiência constitui planos fílmicos que irão motivar o percurso motorizado de Cassiel por tais partes da cidade. A paisagem ora é vista pelo movimento cotidiano dos habitantes, ora pelas imagens documentais que trazem ao presente os impactos da tragédia. As ruas são tomadas pelo lamento e pelas lágrimas dos sobreviventes. O trajeto de Cassiel pelas ruas de Berlim o conduz a um set de filmagem onde se reconstituem passagens trágicas sugeridas pela guerra.
Agora, em um filme dentro do filme de Wenders, intercalado ainda de outros filmes documentários, o diretor utiliza-se de uma figura que é ele próprio como personagem.- Peter Falk, para ilustrar a organização e a produção do set. Há a exposição de atores recrutados, equipe técnica e figurantes selecionados, além de objetos de cena que compõem o espaço de reconstituição dos conflitos passados. Para tanto, o cenário é um dos escombros remanescentes que induz à percepção de um lugar que mescla realidade e representação.
Neste local, a presença de uma senhora escalada para o filme desperta curiosidade quanto ao destaque que lhe é conferido no enquadramento da imagem. Introspectiva, ela pensa sobre momentos duros da guerra e da difícil tarefa das mulheres na reconstrução da cidade. Mais uma vez, Wenders utiliza imagens coloridas e documentais para facilitar a compreensão e veracidade dos fatos. Não parece se tratar apenas de uma opção estética, mas de enfatizar o que algumas pessoas vivenciaram.
Enquanto transcorrem as filmagens, Damiel e Cassiel seguem para o circo e assistem a um espetáculo voltado para o público infantil. No centro do picadeiro, Marion, paramentada de felino, apresenta jogos de malabares que aguçam o imaginário das crianças ante a arte do equilíbrio. A gata finaliza o espetáculo numa apoteótica chuva de balões, o que instiga meninas e meninos a tomarem o palco e o mundo da fantasia, numa atitude de celebração da vida e da alegria.
Plano geral: uma árvore seca, entre águas frias e névoa, sublinha a solidão; o isolamento. À beira de um dos canais da cidade, onde se vêem cisnes repousando sobre as águas, Damiel e Cassiel refletem sobre o estado das coisas que presenciam. Andam por uma calçada vazia que faceia o Muro de Berlim. Param e fixam o olhar sobre a paisagem que se revela, em plano aberto, árida e fria, que pouco estimula a presença das pessoas. Sobre o canal, uma revoada de pássaros ganha os céus e transpõe as fronteiras da intolerância.
Num plano geral da cidade, uma grua se movimenta na construção de um edifício e se fixa no centro da imagem, como artifício de mudança da sequência do filme. Entre a massa edificada, a câmera se dirige para o emblemático edifício da Mercedes Benz, local escolhido por um homem para cometer suicídio. Cassiel não consegue detê-lo. Ele cai sobre Berlim, numa possível alusão à desesperança. O anjo salta sobre a cidade, crianças assustam-se com a briga dos pais, um homem dorme na via pública.
Esta convulsão do espaço urbano só reforça a desestabilidade social e física de Berlim. Na agitação desordenada, insert de imagens histórico-documentais trazem à tela uma cidade em chamas. O contraponto se faz nos planos seguintes, ao explorar a perspectiva do sonho e da busca do equilíbrio emocional dos indivíduos, utilizando-se para isso o universo circense. O malabarismo repousa, enquanto os artistas celebram mais uma temporada de espetáculo sob a exuberância poética da lua cheia.
Numa boate, Marion se deixa levar pelo som de uma banda de rock e dança entre pessoas que restringem toda comunicação apenas ao compartilhamento das batidas musicais. Damiel, sob o olhar absorto de Cassiel, mira a trapezista em contidos movimentos de baile e, em fração de tempo, se humaniza e se mostra seduzido por ela. Na mesma noite, Cassiel se afasta para refletir sobre sua permanência na cidade. Vai a uma lavanderia, aproxima-se da única usuária daquele serviço: uma mulher turca entre suas malas de viagem.
As máquinas de lavar roupa encerram a sequência em alusão ao tempo e ao espaço real, modificando-os e incorporando-os à imaginação. O plano posterior, cenicamente construído a partir da montagem com efeitos de fusão, comprova este tipo de associação. Nele, o presente e o sonho se mesclam quando se inscreve nas imagens o pouso das asas do anjo Damiel sobre a face adormecida de Marion. Ele acaricia as mãos e o rosto da mulher como sinal de mudança de seu percurso.
Daí em diante, percorre-se Berlim através de uma sucessão de cenas do cotidiano urbano. Dentro de um ônibus – BVG-Doppeldeckerbus, num entardecer, Cassiel pensa sobre os rumos que irá tomar. Diante de um imbiss, Damiel vê Peter Falk desenhando as ruínas da antiga estação de trem Anhalter Bahnhof. Depois, anda ao lado de Cassiel na faixa lindeira ao Muro, na face branca e fria da barreira de concreto, que se impõe sob a égide da militarização soviética. O companheiro percebe o seu desejo de permanecer naquela cidade.
Subitamente, Damiel se afasta da condição celestial para adentrar o espaço humano. Desacordado, Cassiel o transporta para o lado ocidental, onde o Muro está pintado de grafites à semelhança de figuras guardiãs. Um helicóptero sobrevoa a área, e crianças o observam. Sobre a sua cabeça cai uma armadura que o fere e desperta. O sangue do ferimento prova que se tornara homem. As cores e os sons da cidade o surpreendem e compõem sua nova realidade.
Em frente do Muro, esboça o seu primeiro diálogo com um passante, indagando-lhe a identificação das cores de cada figura que compõe o mural de grafites. Sente frio. Vai a um imbiss e toma café. Perambula pelas ruas do bairro de Kreuzberg, sob a linha do U-Bahn – o metrô de superfície –, e, num antiquário, típica lojinha de Schöneberg, troca a armadura por chapéu e casaco de inverno. Uma criança aproxima-se dele e pede informação sobre uma direção a tomar na cidade.
Como cidadão, Damiel segue livremente por Berlim. Insert de uma sequência dos artistas do circo levantando acampamento. Enquanto isso, ele chega ao antigo abrigo de guerra – Luftschutzbunker, locação do filme de Mister Falk – As himself. Separados por um gradil, os dois conversam, em inglês, sobre curiosidades de Damiel acerca das operações que envolvem os mecanismos de uma filmagem.
Cassiel mais uma vez repousa sobre a Siegessäule, o seu refúgio fincado no Tiergarten. Do parque, pressente o estado de melancolia de Marion em mais um fim de temporada. Ouve seus pensamentos e vai ao seu encontro como um ser que irá guiá-la nos passos seguintes. Já Damiel, agora humanizado, corre ansioso pelas ruas, entre os automóveis, para chegar ao circo. Paralisa-se ao perceber o vazio do local. Restam somente marcas geométricas do lugar do picadeiro; o círculo por onde ele caminha aos chutes, em desespero.
Dois meninos rompem o plano fixo, vão em direção ao centro do círculo e se aproximam de Damiel. Desolado, ele olha para as crianças e, em seguida, amarra o cadarço do sapato de um deles. A imagem transforma-se em preto e branco com a presença de Cassiel, a mão amiga que descansa sobre o ombro de Damiel induzindo-o a encontrar o que o moveu a permanecer na terra. Daí em diante, ele sai do metrô, anda por entre lojas da estação, come uma maçã e vê numa televisão o diretor Mister Falk.
Na tela da TV, um relógio sinaliza as horas e o tempo para Damiel. No mesmo instante, num imbiss, Marion toma café quando o diretor americano chega ao balcão e faz seu pedido, e Cassiel, do outro lado da rua, observa a rápida conversa entre os dois. Ela parte e Mister Falk, observado pela balconista, fala algo como “eu não posso ver você, mas sei que você está aí”, o que surpreende Cassiel. Corta para um shopping center, onde Damiel e Marion circulam em lados opostos.
Damiel sai numa rua pouco iluminada onde um cartaz lhe chama a atenção sobre um show musical: Nick Cave and The Bad Seeds. No meio de uma expressiva platéia, estão ele e Marion absorvidos pela melodia. Do palco, ao lado da banda, Cassiel dirige o olhar para os pontos do ambiente em que cada um se encontra. No balcão do bar, fora da pista de dança, Damiel toma uma bebida. Marion, em traje vermelho, sente-se atraída por ele, que lhe oferece uma taça de vinho. Enamoram-se.
Homer, de costas e portando um guarda-chuva, anda em direção ao Muro que anuncia o fim de um capítulo da história da cidade. Damiel e Marion, juntos num salão, fazem acrobacias com uma corda que desce do teto. Cassiel, sentado na escadaria, admira os movimentos de equilíbrio da trapezista conduzida pelas mãos do seu parceiro e cúmplice do espetáculo anunciado. O anjo Cassiel retorna à Siegessäule e lança o seu olhar sobre Berlim. Fortsetzung folgt. Isto é: “continua”. E o filme acaba.





[1] Siegessäule é um ícone da cidade de Berlim, sob a forma de obelisco adornado no topo com uma figura de anjo. A Coluna Vitória, como é conhecida, foi concluída em 1873 para comemorar a vitória dos militares prussianos sobre os austríacos, dinamarqueses e franceses, em meados do século XIX.

RIO 40 ° - O Olhar de Nelson Pereira dos Santos sobre a Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.



Sobre o ar ela plaina e flutua. Faceia contornos curvos e exuberantes da fisionomia pétrea, que no silêncio se impõe e se faz cúmplice do olhar curioso. Imprime movimento sobre o que fixo, reluz movimento. Guiada por mãos cautelosas, ela é o instrumento de mira e captura da geometria sinuosa. Esta é a câmera que desliza entre a gravidade e surpreende o espectador ao capturar variadas paisagens urbanas: naturais e construídas. Tinge a tela com os créditos a Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro em Rio, 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos.
O filme se inicia pela demonstração de apreço à exuberância natural e aos contrastes entre sítio geográfico e arquitetura da popularmente conhecida Cidade Maravilhosa. Parte de um plano geral da cidade, onde ícones da paisagem como o morro do Pão de Açúcar, que brota da Baía de Guanabara, e a Praia de Copacabana ilustram uma geografia que define contornos de pura beleza. É o Rio de Janeiro de águas e montanhas que fascina os visitantes e os seus moradores. Mas é também a cidade cuja morfologia está conformada por uma construção socioespacial heterogênea e fragmentada.
Do “cartão postal” ao universo das favelas, pela primeira vez a cidade é representada a partir de contrastes físicos e conflitos societários. Quando a câmera vem do alto, a paisagem fílmica carioca em nada é reveladora da existência de espaços que guardam oposições entre si. Este é, porém, o desejo e a missão que o cineasta dá a si próprio.
 Ao idealizar Rio, 40 Graus, Nelson Pereira dos Santos evidentemente não tratou de documentar um dia de intenso calor no Rio de Janeiro. A estória contada pelo cineasta enfoca os diferentes tipos humanos que vivem, circulam e experimentam a adversidade urbana de maneira individual ou coletiva. Trata-se de um calor, ou melhor, de uma tensão, que é antes de tudo social e está, naqueles idos de 1955 quando o filme foi realizado, prestes a explodir, malgrado o tom de alegria. Há os que estão na praia da zona sul – áreas nobres da cidade –, os que estão no estádio de futebol do Maracanã – que toma o centro da tela – e os que habitam na área da favela. Daí, no Morro do Cabuçu, saem, por exemplo, os garotos vendedores de amendoim, que transitam por todos os ambientes filmados e articulam a narrativa do filme. Trazem à mão latas que estocam e aquecem os grãos em brasas de carvão, prática bem conhecida na cultura carioca. Latas que fazem par com as de água transportadas na cabeça de moradores, que sobem e descem o morro pelas ladeiras de chão batido e casebres de tipologia rudimentar com telhados de duas águas, distribuídos, à época, ainda de forma rarefeita.
Em película preto e branco, com fotografia que espelha uma estética austera e ao mesmo tempo suave, o filme produz admiráveis efeitos de luz e sombra que, subliminarmente, representam não apenas um domingo de muito sol, mas o colorido da paisagem e dos tipos humanos. Atmosfera pontuada por uma música que, em ritmo de samba, enaltece a cultura popular e traz, em refrão, certa alegria. Entretanto, o primeiro diálogo vem do interior da favela e expressa desentendimentos familiares. Em frente ao seu barraco, a dona de casa esboça o conflito familiar provocado pelo alcoolismo do marido, chama a atenção da filha sobre a escolha de namorado, enquanto lhe pede para comprar feijão na feira.
A sequência seguinte constrói imagens do cotidiano de crianças nas áreas livres da favela, onde os vendedores de amendoim, munidos de seus aparatos de comércio, se preparam para a jornada de vendas em vários pontos da cidade. Uns querem ir para o Corcovado, outros para o Pão de Açúcar ou qualquer lugar onde haja o maior número de turistas. Associado aos meninos está um adolescente que age como expropriador dos demais, contrapondo-se ao personagem Jorge que, com a mãe doente numa cama, é arrimo de família. Nesse ínterim, entre crianças que jogam futebol de rua ou pessoas que levam latas de água na cabeça, aparece o típico “malandro do morro” – o Miro – que nutre desejo e obsessão pela “mocinha”, a operária Alice.
Nas lentes do cineasta, a favela é o ponto de partida para a compreensão e percepção do espaço real da cidade do Rio de Janeiro. É quando a câmera se afasta dos monumentos construídos pela natureza, para desvelar o constructo social urbano. No Morro do Cabuçu há pesos e medidas, estorvos e “acertos”. Condição que reforça esse recorte espacial da desigualdade. A favela aqui mostra sua face múltipla, seus personagens são heterogêneos bem como as práticas humanas radiografadas e filtradas na composição e movimento das imagens. Define-se, pois, um universo relacional da informalidade, composto de espaços públicos que definem áreas de circulação, de encontros, embates e dispersão.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Almas de Guardanapo



Tenho 22 anos, beirando 23. Logo-logo 24, 25... 27... quiçá! Não escrevo diário, tenho receio de mim mesmo. Receio do que escrever sobre o que desconheço. Eu, eu apenas coleciono vidas inanimadas; réplicas paralisadas de um eu espetacular que lança timidamente movimentos previsíveis, tais quais os espectros. Minha gramática é monossilábica: torpe e curta. Não é à toa que me dirijo a outrem com o artifício da alcunha: Fá, Fê, Si, Rê, Vi. Talvez não tarde e chegue o dia de recriar a mim mesmo. Hoje, vejo e estou cego, ouço e estou surdo, falo e estou mudo. Nem mesmo o tato é arrebatador. É, pois, cênico! Choro aqui e gargalho ali. Embalo-me nas ondas clássicas da mijada midiática. Ou de qualquer onda. É somente uma onda. É uma enxurrada tsunâmica de imprecisos verbos, absorvidos pelos espelhos eletrônicos que me custam os olhos e as horas. Fragmentos de projeção sem glória ou substratos de casca e vento? Desnudo-me e, perplexo, percorro meus próprios campos investidos de medo e complexos. Antes, vou tomar um gole, ou melhor, vários goles etílicos capazes de impulsionar minha própria sombra nos salões da fantasia e das efêmeras alcovas. Esqueço-me que os holofotes também nos cegam. Revisito-me e não sei por quê! Fato é que comi o pão, bebi a água e arrotei a energia alheia sugada. Só me resta limpar a boca, amassar o guardanapo e atirá-lo a esmo? 

quinta-feira, 1 de março de 2012

A Viagem de Saramago


"Caros amigos, 


em 18 de junho de 2010, o Silêncio. Apenas alguns segundos de reflexão.



Ainda é possível emocionar-se nessa vida da hipermodernidade? (termo utilizado pelo filósofo contemporâneo francês Gilles Lipovetzky) Ou só nos emocionamos a partir da necessidade do consumo exacerbado, impetrado pelas armadilhas da propaganda e da mídia? Hoje, o "ter" (em demasia) é protagonista em relação ao "ser". Nessa hipermodernidade, e também era do "medo" como ressaltava nosso saudoso geógrafo Milton Santos, tudo parece descartável; inclusive as pessoas. Fenômeno sociocultural muito presente nas metrópoles e que se espalha como tentáculos obscuros para os centros urbanos menores.



Morreu José Saramago. Ou melhor, Saramago voou para o infinito, entre luzes e trevas. "A viagem do elefante” nos deixa um imenso vazio nesses "Ensaios sobre a Cegueira e Lucidez" - humana. Tanto como voz das "letras portuguesas", como expoente do grito de liberdade humana e contestação política, inclusive da própria noção de democracia. Portugal acordou triste. O mundo ficou mais triste. Eu também fico triste. E, ao emocionar-me diante de tamanha perda, percebo que ainda posso ter momentos de profunda lamentação. Esse Nobel da Literatura nos conforta pela obra que herdamos sem fazer qualquer esforço. 



Fico a pensar o que será das letras em mundo cada vez mais veloz e contraditório. Vivemos entre ser diferente e a indiferença (Lipovetsky), e escassez e ausência de respostas - qualquer que seja. Talvez por isso, fui alimentar-me de mais emoção ao assistir ao filme "Cartas para Julieta". Além de ver a sábia atriz inglesa Vanessa Redgrave, com o brilho em seus cabelos alvos e olhos de azul profundo, cada vez mais acredito estar certo: o cinema nos poupa, ou nos liberta, dos divãs psicanalistas.



Nesse dia intenso de emoção, trabalhamos em nosso documentário sobre os apartados da vida hipermoderna - os pobres; mas não menos isentos e também cúmplices dos impactos do consumismo; do supérfluo. Como Saramago, também vou "cuspir marimbondos" através de imagens, como voz de oposição a esse mundo que insiste em criar (in)verdades e abismos descortinados para os mais desavisados.



E só! Afinal, cartas (e:mail's) são para ser enviadas sem esperar respostas (Villa Lobos).



Toque no coração; apenas!"

Texto originalmente escrito em 18 de junho de 2010

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Traços Entrelaçados

Traços entrelaçados.  Assim nos parece uma maneira preliminar e particular para descrever, sem julgamentos de valor, os conteúdos artísticos que se apresentam nos desenhos de Gustavo Badolati Racca. Seus impulsos, conscientes ou inconscientes, para tingir o campo neutro materializam signos e significados em unidades de expressão muito próximas da semiótica de Greimas. Unidades categorizadas pelos tons e saturação – categorias cromáticas – e pelos contornos, texturas, direções – categorias eidéticas. Os desenhos constroem, desconstroem e reconstroem geometrias capazes de inscrever percepções próprias da psicologia cognitiva, cujo espaço visual induz o observador à formação de imagens imbricadas de sonhos e/ou alucinações, ou pulsões fundamentadas na contramão da culpa. Lembra-nos, aqui, o que é contrário ao senso comum em relação à consciência moral, para a qual Freud compreendia como aquela que nasce da renúncia e não a renúncia às pulsões que advém dela. Se for preciso desafiar as leis, ou a desobediência a sua origem edipiana, é imperativo correlacioná-las ao desejo como propôs Kant. Contudo, a lei é o desejo recalcado como sentenciava Lacan ao perseguir meandros do pensamento kantiano. Mas, se a psicanálise exige debates mais aguçados sobre aspectos comportamentais humanos, interessa-nos neste momento lembrar das transgressões da arte e dos artistas ao construírem estéticas próprias da expressão impulsionadas pela experiência, pelo inconsciente e pelas representações. Os ensaios de Racca transpõem a simples anatomia e a verossimilhança das formas visíveis para a especulação e a experimentação criativa.  Sobre isso, John Dewey (2010), emArte como experiência, sublinha que:


Toda experiência, seja ela de importância ínfima ou enorme, começa com uma impulsão, e não como uma impulsão. Digo ‘impulsão’ em vez de ‘impulso’. Um impulso é especializado e particular; mesmo quando instintivo, é simplesmente parte do mecanismo envolvido em uma adaptação mais completa ao meio. ‘Impulsão’ designa um movimento de todo o organismo para fora e para adiante, e dela alguns impulsos especiais são auxiliares. É a ânsia de alimento da criatura viva em contraste com as reações da língua e dos lábios que estão envolvidos no deglutir; é o voltar-se do corpo como um todo para a luz, como heliotropismo das plantas, em contraste com o acompanhar uma luz particular com os olhos.  (DEWEY, 2010: 143).

Os desenhos que neste painel – Blog – fogem do caricato expressam introspecção, exterioridade, melancolia, carne e memória ou desejo de voos que se fixam no imaginário. Os traços seguem uma linha tênue entre começo e fim para entrelaçá-los sobre a superfície plana e clara, com desejo de extrapolar o campo material.

Desenho: Gustavo Racca