terça-feira, 2 de abril de 2013

RIO 40 ° - O Olhar de Nelson Pereira dos Santos sobre a Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.



Sobre o ar ela plaina e flutua. Faceia contornos curvos e exuberantes da fisionomia pétrea, que no silêncio se impõe e se faz cúmplice do olhar curioso. Imprime movimento sobre o que fixo, reluz movimento. Guiada por mãos cautelosas, ela é o instrumento de mira e captura da geometria sinuosa. Esta é a câmera que desliza entre a gravidade e surpreende o espectador ao capturar variadas paisagens urbanas: naturais e construídas. Tinge a tela com os créditos a Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro em Rio, 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos.
O filme se inicia pela demonstração de apreço à exuberância natural e aos contrastes entre sítio geográfico e arquitetura da popularmente conhecida Cidade Maravilhosa. Parte de um plano geral da cidade, onde ícones da paisagem como o morro do Pão de Açúcar, que brota da Baía de Guanabara, e a Praia de Copacabana ilustram uma geografia que define contornos de pura beleza. É o Rio de Janeiro de águas e montanhas que fascina os visitantes e os seus moradores. Mas é também a cidade cuja morfologia está conformada por uma construção socioespacial heterogênea e fragmentada.
Do “cartão postal” ao universo das favelas, pela primeira vez a cidade é representada a partir de contrastes físicos e conflitos societários. Quando a câmera vem do alto, a paisagem fílmica carioca em nada é reveladora da existência de espaços que guardam oposições entre si. Este é, porém, o desejo e a missão que o cineasta dá a si próprio.
 Ao idealizar Rio, 40 Graus, Nelson Pereira dos Santos evidentemente não tratou de documentar um dia de intenso calor no Rio de Janeiro. A estória contada pelo cineasta enfoca os diferentes tipos humanos que vivem, circulam e experimentam a adversidade urbana de maneira individual ou coletiva. Trata-se de um calor, ou melhor, de uma tensão, que é antes de tudo social e está, naqueles idos de 1955 quando o filme foi realizado, prestes a explodir, malgrado o tom de alegria. Há os que estão na praia da zona sul – áreas nobres da cidade –, os que estão no estádio de futebol do Maracanã – que toma o centro da tela – e os que habitam na área da favela. Daí, no Morro do Cabuçu, saem, por exemplo, os garotos vendedores de amendoim, que transitam por todos os ambientes filmados e articulam a narrativa do filme. Trazem à mão latas que estocam e aquecem os grãos em brasas de carvão, prática bem conhecida na cultura carioca. Latas que fazem par com as de água transportadas na cabeça de moradores, que sobem e descem o morro pelas ladeiras de chão batido e casebres de tipologia rudimentar com telhados de duas águas, distribuídos, à época, ainda de forma rarefeita.
Em película preto e branco, com fotografia que espelha uma estética austera e ao mesmo tempo suave, o filme produz admiráveis efeitos de luz e sombra que, subliminarmente, representam não apenas um domingo de muito sol, mas o colorido da paisagem e dos tipos humanos. Atmosfera pontuada por uma música que, em ritmo de samba, enaltece a cultura popular e traz, em refrão, certa alegria. Entretanto, o primeiro diálogo vem do interior da favela e expressa desentendimentos familiares. Em frente ao seu barraco, a dona de casa esboça o conflito familiar provocado pelo alcoolismo do marido, chama a atenção da filha sobre a escolha de namorado, enquanto lhe pede para comprar feijão na feira.
A sequência seguinte constrói imagens do cotidiano de crianças nas áreas livres da favela, onde os vendedores de amendoim, munidos de seus aparatos de comércio, se preparam para a jornada de vendas em vários pontos da cidade. Uns querem ir para o Corcovado, outros para o Pão de Açúcar ou qualquer lugar onde haja o maior número de turistas. Associado aos meninos está um adolescente que age como expropriador dos demais, contrapondo-se ao personagem Jorge que, com a mãe doente numa cama, é arrimo de família. Nesse ínterim, entre crianças que jogam futebol de rua ou pessoas que levam latas de água na cabeça, aparece o típico “malandro do morro” – o Miro – que nutre desejo e obsessão pela “mocinha”, a operária Alice.
Nas lentes do cineasta, a favela é o ponto de partida para a compreensão e percepção do espaço real da cidade do Rio de Janeiro. É quando a câmera se afasta dos monumentos construídos pela natureza, para desvelar o constructo social urbano. No Morro do Cabuçu há pesos e medidas, estorvos e “acertos”. Condição que reforça esse recorte espacial da desigualdade. A favela aqui mostra sua face múltipla, seus personagens são heterogêneos bem como as práticas humanas radiografadas e filtradas na composição e movimento das imagens. Define-se, pois, um universo relacional da informalidade, composto de espaços públicos que definem áreas de circulação, de encontros, embates e dispersão.

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