Sobre o ar ela plaina e flutua. Faceia contornos curvos e exuberantes da fisionomia pétrea, que no silêncio se impõe e se faz cúmplice do olhar curioso. Imprime movimento sobre o que fixo, reluz movimento. Guiada por mãos cautelosas, ela é o instrumento de mira e captura da geometria sinuosa. Esta é a câmera que desliza entre a gravidade e surpreende o espectador ao capturar variadas paisagens urbanas: naturais e construídas. Tinge a tela com os créditos a Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro em Rio, 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos.
O filme se
inicia pela demonstração de apreço à exuberância natural e aos contrastes entre
sítio geográfico e arquitetura da popularmente conhecida Cidade Maravilhosa.
Parte de um plano geral da cidade, onde ícones da paisagem como o morro do Pão
de Açúcar, que brota da Baía de Guanabara, e a Praia de Copacabana ilustram uma
geografia que define contornos de pura beleza. É o Rio de Janeiro de águas e
montanhas que fascina os visitantes e os seus moradores. Mas é também a cidade
cuja morfologia está conformada por uma construção socioespacial heterogênea e
fragmentada.
Do “cartão
postal” ao universo das favelas, pela primeira vez a cidade é representada a
partir de contrastes físicos e conflitos societários. Quando a câmera vem do
alto, a paisagem fílmica carioca em nada é reveladora da existência de espaços
que guardam oposições entre si. Este é, porém, o desejo e a missão que o
cineasta dá a si próprio.
Ao idealizar Rio, 40 Graus, Nelson Pereira dos Santos evidentemente não tratou
de documentar um dia de intenso calor no Rio de Janeiro. A estória contada pelo
cineasta enfoca os diferentes tipos humanos que vivem, circulam e experimentam
a adversidade urbana de maneira individual ou coletiva. Trata-se de um calor, ou
melhor, de uma tensão, que é antes de tudo social e está, naqueles idos de 1955
quando o filme foi realizado, prestes a explodir, malgrado o tom de alegria. Há
os que estão na praia da zona sul – áreas nobres da cidade –, os que estão no
estádio de futebol do Maracanã – que toma o centro da tela – e os que habitam na
área da favela. Daí, no Morro do Cabuçu, saem, por exemplo, os garotos
vendedores de amendoim, que transitam por todos os ambientes filmados e articulam
a narrativa do filme. Trazem à mão latas que estocam e aquecem os grãos em
brasas de carvão, prática bem conhecida na cultura carioca. Latas que fazem par com as de água transportadas na cabeça de moradores, que
sobem e descem o morro pelas ladeiras de chão batido e casebres de tipologia
rudimentar com telhados de duas águas, distribuídos, à época, ainda de forma
rarefeita.
Em película preto e branco, com fotografia que espelha uma estética austera e ao mesmo
tempo suave, o filme produz admiráveis efeitos de luz e sombra que,
subliminarmente, representam não apenas um domingo de muito sol, mas o colorido
da paisagem e dos tipos humanos. Atmosfera pontuada por uma música que, em
ritmo de samba, enaltece a cultura popular e traz, em refrão, certa alegria.
Entretanto, o primeiro diálogo vem do interior da favela e expressa desentendimentos familiares. Em frente ao seu barraco, a
dona de casa esboça o conflito familiar provocado pelo alcoolismo do marido,
chama a atenção da filha sobre a escolha de namorado, enquanto lhe pede para comprar feijão na feira.
A sequência
seguinte constrói imagens do cotidiano de crianças nas áreas livres da favela, onde
os vendedores de amendoim, munidos de seus aparatos de comércio, se preparam
para a jornada de vendas em vários pontos da cidade. Uns querem ir para o
Corcovado, outros para o Pão de Açúcar ou qualquer lugar onde haja o maior
número de turistas. Associado aos meninos está um adolescente que age como
expropriador dos demais, contrapondo-se ao personagem Jorge que, com a mãe
doente numa cama, é arrimo de família. Nesse ínterim, entre crianças que jogam
futebol de rua ou pessoas que levam latas de água na cabeça, aparece o típico “malandro do morro” – o Miro – que nutre desejo e obsessão
pela “mocinha”, a operária Alice.
Nas lentes do
cineasta, a favela é o ponto de partida para a compreensão e percepção do
espaço real da cidade do Rio de Janeiro. É quando a câmera se afasta dos monumentos
construídos pela natureza, para desvelar o constructo social urbano. No Morro
do Cabuçu há pesos e medidas, estorvos e “acertos”. Condição que reforça esse
recorte espacial da desigualdade. A favela aqui
mostra sua face múltipla, seus personagens são
heterogêneos bem como as práticas humanas radiografadas e filtradas na
composição e movimento das imagens. Define-se, pois, um universo relacional da
informalidade, composto de espaços públicos que definem áreas de circulação, de
encontros, embates e dispersão.
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